Delicadeza, essa bobagem
by Nina Crintzs
Hoje uma amiga muito querida levou um trote. Lembra disso?! De quando você era criança e passava trote pelo telefone? Ou recebia? Pois é, eu nem sabia que ainda existia esse tipo de coisa. Acreditem: existe.
A minha amiga é uma mulher adulta, profissional talentosa, artista criativa e, logo, uma criatura de alma delicada. O trote que ela recebeu ali, na minha frente, num café charmoso onde a gente se encontrou pra botar o papo em dia, tinha endereço certo. Não era uma coisa aleatória: a pessoa que ligava sabia o nome, o telefone e a profissão dela. Confusa com a ligação que vinha de um número bloqueado, e depois de ter sido infinitamente educada com alguém que fazia perguntas sem sentido e afirmações ofensivas, ela desligou o telefone, chocada. “Espera, Nina, desculpa, mas eu preciso entender o que aconteceu aqui.” E a gente entendeu, rápido: o trote vinha de um amigo comediante que estava gravando um programa de TV, supostamente engraçado, para um canal de conteúdo jovem. Oi?! Atenção: o “amigo” dela tinha dado as informações e estava se divertindo com a “piada”.
Na semana passada, eu vi um menino de dez anos de idade chorar porque não soube o que fazer quando as meninas do prédio resolveram implicar com ele: “mas pai, eu não posso bater em menina, né?” Não, João, não pode, você tá certíssimo, querido. Não pode bater em menina, assim como também não pode achar normal ou, pior, bacana, zoar seu amigo em rede nacional sem o consentimento dele pra brincadeira. Qualquer criança de dez anos de idade sabe disso.
Só que os adultos parecem ter esquecido. A ex-namorada de um outro amigo, descubro, arrotava na frente dele depois de menos de dois meses juntos. Intimidade?! Será mesmo?! A mulher, atual, de outro, ameaçou se jogar pela janela na única discussão séria que eles tiveram ao longo dos cinco anos de casamento. Desespero?! Não sei, não. Desconfio que alguma coisa está seriamente errada quando vale ameaçar se matar pra ganhar uma discussão.
No trabalho, no mundo dos freelas, ninguém tem vergonha de pedir que o job seja entregue “amanhã de manhã”. O que significa, inevitavelmente, que alguém – ou uma galera – não vai dormir pra dar conta do recado. E piora: a criatura vira a noite, se entope de café com ritalina, e descobre, um mês depois, que só então alguém realmente precisou daquilo que era urgente, inadiável, pra “amanhã de manhã”.
O que todas essas coisas tem em comum? Well, além do fato óbvio de terem se manifestado no mesmo dia da minha vida, é com total perplexidade que eu percebo o tamanho do desrespeito e da indelicadeza com que temos tratado uns aos outros. Em todas as esferas das nossas vidas: social ou privada, não importa. O outro não existe. O outro que se foda. E a gente anda tão costumado com isso que nem percebe mais, e vai achando outros nomes pra selvageria indiscriminada: piada, humor, intimidade, pressa… You pick one. It’s all bullshit.
Quando na verdade o que nos falta é delicadeza. Respeito, outra coisa raríssima, era pra vir ainda antes. Sumiram os dois. E o resultado é uma perda enorme para todos nós, que seguimos embrutecidos e anestesiados, achando tudo muito “normal”.
Sorry. Eu me nego a achar normal um programa de televisão que sobrevive de achincalhar os “amigos” dos convidados. Eu não acho bacana arrotar na frente do namorado novo, que é um lindo, gentil e doce. Eu acho um absurdo a criatura ameaçar se jogar pela janela pra manter o casamento. E eu me pergunto, estupefata: como foi que a gente deixou a coisa desandar a esse ponto?!
Eu sei, eu sei… Eu falando em delicadeza e enquanto isso, na África… Mas o mundo se esquece da África assim como a gente se esquece uns dos outros. É uma questão de prioridade: perde-se o amigo, mas não a piada. Todo mundo arrota quando quer, e em uníssono arrotamos a “liberdade de expressão”, né?!
Indignada, escrevo um post rápido no facebook, e alguém se assombra com o fato de que eu ainda me surpreenda com a indelicadeza generalizada. Sim, eu faço questão de me surpreender: no dia em que a gente não perceber mais a total falta de cuidado, o que é que sobra?! “Amendoim e cerveja”, alguém responde fazendo piada. Resposta errada: não dá pra rir com a estupidez transformada em regra.
Séculos de civilização, as obras de arte mais delicadas, sinfonias inteiras e poemas em linha: bóra queimar tudo isso na mesma fogueira do fundo falso do programa de tevê a cabo?
Cheguei em casa tal indignada com o tal trote que passaram na minha amiga que vociferei pela cozinha, em pleno jantar, a história inteira. João, o sábio de dez anos de idade, a única pessoa lúcida do mundo, escuta tudo espantado e no fim diz, simples assim: “Processa, né?”. É, João, você, mais uma vez, tem razão. Já que a gente desaprendeu tudo, não tem outro jeito, não.
E o mesmo João, depois de dois segundos de silêncio, tira da manga uma última pergunta, na dúvida: “Mas Nina, essas pessoas dessa história do trote, eram todas adultas?”. Durma-se com um barulho desses. E continua não valendo bater em menina.
Parabéns pelo post, muito bom!
Nina, nao sei como seu post veio parar na minha caixa de entrada de emails. Queria saber.
Mas foi muito bem vindo. Adorei. Nunca entendi como as pessoas podem se divertir com o incômodo alheio, sempre considerei uma deseducação terrível!
Muito bom texto! Adorei recebê-lo hoje no meu e-mail. =)
Não adianta eu falar que faço assim ou assado. Que sou educada, gentil (ou pelo menos tento, né? Todo santo dia). Mas já não garanto tanto me assustar com tudo isso. Culpa um pouco do Budismo, que venho praticando para domar minha ansiedade monstra. Não me leve a mal. 😉
Mas concordo. Estamos perdendo as estribeiras.
Muito bom!
It can always get worse…like you said.
Amei!
É mais uma vez é compravado que a extinção não está só entre os animais rochas ou coisas apenas…. está no ser humano também… Aquela espécie de ser humano que sabe RESPEITAR o outro…. Ahhhhhh é uma pena!!!!!! Sobraram os Coisas Humanos…. Triste!!!!!!
Texto lindo e muiiiiito bem escrito. Apenas uma ressalva: muitas palavras em ingles. No mais perfeito!!!!!
O engraçado é q a amiga fica mais ofendida que a pessoa que recebeu o trote em questão. Parece que ninguém liga pra ela, nem pra passar trote…
Puts, Pedro, ainda bem que não me ligam, né!?
E você é tipo gênio – tô passada! – é bem esse meu problema: tô com inveja do trote!
Sua sensibilidade é sublime!
#NOT.
A lição que ficou pra mim: você é afim do namorado da sua amiga que arrota!
LOL
Sempre uma satisfação ler teus posts.
Há duas semanas meu horário de dormir é decidido pelos meus vizinhos, a despeito de qualquer conversa ou pedido.
Última vez, de tão cansada, sentei na cama e chorei que nem criança.
A sensação de quem é desrespeitado é… Sei lá.
Noite passada eu fui dormir em outro lugar. Não na minha casa, na minha cama, com meu namorado.
Ler teu post fez me sentir menos horrível.
Nossa…vc deve ser uma pessoa extremamente chata.
Sou, Michele, bem chata mesmo.
De verdade.
Mas isso tem pouco a ver com a falta de delicadeza alheia…
GENTE DENÚNCIA!!! ARROTOU NA FRENTE DO NAMORADO!!!!!!!!!!!!
LOL – adorei!
que absurdo não é mesmo????? pelo que percebo você nao peida, nao arrota, nao deve fazer coco, é chata, e com toda certeza do mundo não tem namorado !!!!!
ps : está precisando transar. mas cuidado pra não peidar .
Rindo alto aqui.
Eu queria poder comentar algo construtivo, mas você já disse absolutamente tudo que penso! Na verdade, às vezes me acho meio repetitiva comigo mesma por sempre pensar em “bom senso” quando vejo atitudes como essas por aí… Mas de repente isso só mostra como, de fato, é disso que o mundo está carente: bom senso.
E muita gente confunde “delicadeza” com “fingir ser quem não é”; por exemplo, a guria que arrota na frente do novo namorado pode dizer que se não o fizesse, estaria deixando sua personalidade de lado, que é assim mesmo, porra louca. Só que não. É inevitável que certas características pessoais aflorem com o passar do tempo – afinal, o que é um arroto diante dos fluidos trocados entre um casal? – mas tudo tem hora e momento e as pessoas estão andando com seus relógios completamente desregulados.
eu às vezes me acho uma tonta por me indignar com coisas que as pessoas em geral acham “normais.”
que bom que não sou a única.
🙂
Amei o texto. Muito bem escrito, também.
Mas como tem troll analfabeto funcional nessa internet.
Num é?! Me divirto…. Até, claro, perder a paciência.
Falta a nós, polidez, a mais básica das qualidades. Polidez é nossa capacidade de agir “por fora” como nós seríamos “por dentro”, vejo que aquilo que temos por “dentro” muitas vezes é considerado como “livre expressão”, liberdade é uma conquista e não uma imposição do que se é à custa da liberdade do outro.
Abaixo a imposição da cretinisse, da liberdade que terminana quando a do outro começa, precisamos de respeito real e nos revoltarmos com o que é feito com a liberdade herdada sem conquista é um sinal de que ainda somos humanos.
Nina…Seu post é um “tapa na cara” de muitas pessoas. Pessoas que vêm até meu guichê diariamente e não me respondem nem o “bom dia” e vão sem nem olhar para mim. Até meu João, que tem 6 anos, antes de pedir qualquer coisa pra alguém fala: Bom – Dia, tudo bem?. Pois é… Essa delicadeza virou uma desconhecida.
Nossa, li este texto e já virei mega fã! VC ARRASA MUITOOOOO
[…] Delicadeza, essa bobagem – Em tempos que a grosseria ao invés de errada virou “descolada” e “engraçada”, a Nina Crintzs escreveu em seu blog, o Purplesofa, um texto maravilhoso a respeito! Será o fim da delicadeza, da cordialidade? Há quem diga que é assim mesmo, que devemos nos conformar com namoradas arrotando na cara de namorados e programas de TV que acham divertido dar trotes. Será? Seja como for, no meio de tanta ignorância é uma delícia encontrar na internet palavras como a da Nina nesse texto. […]